terça-feira, 30 de maio de 2017

Recordações do fim da Idade Média

Por Tarso Genro, no site Sul-21:

“Bastou o Presidente Fernando Henrique Cardoso entregar os Ministérios dos Transportes e da Justiça para Eliseu Padilha e Iris Resende e os peemedebistas fizeram as pazes com o Governo. O Presidente da Câmara Michel Temer (PMDB-SP), Eliseu e o líder do PMDB na Câmara, Geddel Vieira Lima, fecharam neste final de semana a estratégia para abafar o escândalo das denúncias de compra de votos na votação da reeleição.” (Operação Abafa, 19 de maio 1997, O Globo). O fim da “idade média” da corrupção no Brasil, momento em que ela começa operar diretamente como um moderno partido estatal da elite urbana empresarial-burguesa e dos resquícios oligárquico-agrários dos fundões do Brasil, talvez esteja nesta data.

Fernando Henrique, Eliseu Padilha, Michel Temer, Geddel Vieira Lima, destacam-se nesta matéria de vinte anos atrás. Não é correto, para fazer um debate de fundo sobre a crise institucional que vivemos, simplesmente trocar a acusação de lado e dizer que a fonte primária da corrupção no país, nos últimos vinte anos, está exposta na nota referida. Nem dizer que os personagens, ali mencionados, foram complacentes ou sujeitos ativos na referida mercantilização dos votos para a reeleição, pois isso seria atribuir-lhes um delito de tal magnitude que poderia transitar, a acusação, para uma irresponsabilidade política.

Não se pode negar, porém, que esta informação deita luz sobre a República que nos abriga: sobre as delações premiadas, sobre os vazamentos seletivos, sobre o reforço da “exceção” e sobre os fatos -ora abertos ao público- que redesenham a figura do Senador Aécio Neves. Esta informação explicita a derivação golpista da trajetória de Fernando Henrique, ora em curso, e mostra a existência de um grupo orgânico, permanente, tanto de aventuras não republicanas, como de cumplicidade em propósitos, à margem ou dentro da legalidade formal, para liquidar Lula e atribuir ao PT -apoiados pelos moralistas de opereta- todos os males da nação.

A tutela do oligopólio da mídia sobre o discurso do grupo dominante começou a fraquejar. O aparato de Estado -Polícia Federal, MP, Judiciário, está “sem controle”, como agora vem dizendo juristas de direita, dirigentes liberais e corruptos flagrados. Mas o que eles querem dizer é outra coisa: o aparato deixou de ser controlado para atuar numa só direção e começou -a partir do movimento de inércia das suas funções originárias- a se aproximar dos quintais políticos exclusivos do conjunto das classes dominantes. A arrogância do Senador Aécio - flagrada na conversa com seu associado político Zezé Perrela - tem um grau de delírio só mais elevado do que as suas primeiras explicações sobre os dois milhões, solicitados ao grupo JBS.

Ao apresentar o seu livro “História da Filosofia Política Moderna – o Poder”, seu autor, Giuseppe Duso lembra que “a partir do surgimento da ciência política moderna acontece uma ruptura decisiva, com relação ao pensamento anterior, sobre a ação dos homens” (…), pois, “é elaborado um conceito de poder, ou seja, a obrigação política, como se costuma entendê-la: capaz de implicar, em outras palavras (no reconhecimento de) uma força própria do corpo político, superior àquela de todos os indivíduos, uma força que é a garantia da paz, justamente porque todos lhe estão submetidos.” Atualmente a “força própria” do “corpo político superior”, que se submeteu de forma permanente a uma direção política que está fora do corpo “soberano” -o povo- já perdeu todos os restos da sua legitimidade.

O país assiste atônito o que ocorre com uma velocidade política impressionante: a Globo, que colocou Temer no poder, quer a sua renúncia; Gilmar Mendes um ator político permanente quer reconstitucionalizar as decisões do Supremo; o PSDB e Fernando Henrique querem manter Temer e não perder o “controle da situação”; as reformas ameaçam o Estado Social, na expectativa de serem votadas por um Congresso de investigados e denunciados; fala-se, à boca pequena, nos partidos majoritários, na possibilidade manipulatória de um candidato “único” pela via indireta, o suicídio da democracia. O país dessangra na recessão e no desemprego.

Só a reativação da soberania popular por eleições diretas, criará um corpo político legitimado para garantir um mínimo de paz. Não a paz do infortúnio e da fatalidade submissa, mas aquela que vá emergindo, serena e fortalecida, pela voz direta do povo.

* Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.

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